Por: Cláudio Victor de Castro Freitas
1. O Direito do Trabalho, o princípio da proteção e a “captura” da subjetividade do trabalho
A doutrina especializada não deixa dúvidas de que a grande característica do Direito do Trabalho é a proteção do trabalhador, seja por meio de regulamentações legais de condições mínimas de trabalho, seja através de medidas sociais adotadas e implantadas pelo governo e sociedade1. Ou seja, a sua característica tuitiva é um dos motivos de existência2, com garantia de direitos mínimos e fundamentais à pessoa humana, adotando o princípio da proteção ao hipossuficiente como base de tratamento3.
Tais características essenciais ao Direito do Trabalho, conforme lecionam os ensinamentos clássicos da matéria, possuem inegavelmente influência nas doutrinas sociais formadoras, como o socialismo utópico (especialmente por Robert Owen), o materialismo histórico (vide o Manifesto Comunista, por Marx e Engels), o intervencionismo estatal na vertente proletária (novamente Engels), o socialismo de Estado/cátedra (vide Rodbertus e Lassale) e a doutrina social da Igreja (Especialmente pela Encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII e Divinis Redemptoris, do papa Pio XI)4. Todas como um meio de formação da proteção à parte hipossuficiente, que merecia (e merece) atenção especial por não ser a detentora dos meios de produção e escolha dos desígnios da vida no trabalho, criando uma situação de desigualdade não só forma, mas também material.
O objetivo do Direito do Trabalho, portanto, é o reduzir os efeitos mais prejudiciais advindos da subordinação inerente à relação de trabalho, especialmente aqueles que afetam a liberdade, dignidade e segurança humana do trabalhador5.
Daí que, naturalmente, emana o princípio da proteção, no intuito de equilibrar a desigualdade inerente à relação material de trabalho.
Para alguns6 o referido princípio se desdobraria em outros três, quais sejam, norma mais favorável, condição mais benéfica e in dubio pro misero, ao passo que para outros7 se teria um princípio maior do qual, em verdade, todos os demais emanariam.
No entanto, a partir de final da década de 80, sobretudo em razão da globalização, designada como a estreita vinculação entre os diversos sistemas nacionais, regionais ou comunitários, criando a noção de globo terrestre em termos mercadológicos, em detrimento da anterior noção restrita de regionalização/nacionalização, foram afetadas as realidades econômicas, sociais, políticas e culturais, atingindo, assim, as inúmeras sociedades e economias ao redor do mundo.
Surge o sistema neoliberal, em que a generalização do sistema capitalista, uma nova revolução tecnológica e a hegemonia financeiro-especulativa foram apontadas como seus presuspostos, tendo ainda, como requisitos, o pensamento econômico hegemônico de liberalismo, cuja política é focada no ultraliberalismo8.
Os neoliberais propunham diversos modelos de atuação no mercado de trabalho, especialmente por meio da liberdade de negociação com aumento do poder jurídico da representação dos sindicatos para devidas adaptações ao mercado recessivo, sob o mantra de modernização, competição eficiência em contraposição ao anterior e populista dirigismo estatal9. Os principais alvos de ataque do neoliberalismo foram as conquistas obtidas pelas classes trabalhadoras quanto às melhores condições e formas de tutelas legais das relações trabalhistas obtidas ao longo dos períodos de vigência do Estado de Bem-Estar Social10.
O sistema neoliberal, focado sobretudo no modo toyotista de produção e sua acumulação flexível, faz surgir um novo metabolismo social, que surge com sendo um verdadeiro “sociometabolismo da barbárie”, caracterizado pelo metabolismo social de dessocialização através de desemprego em massa e exclusão social, processo de precarização e institucionalização de uma nova precariedade do trabalho, que sedimenta a cultura do medo11.
Dessa forma, o princípio da proteção ao trabalhador vem sofrendo de uma grave crise, permitindo-se uma desproteção em nome do emprego. De forma até mais ferrenha, vale destacar que estranhamente há os defensores no sentido de que o princípio da proteção ao trabalhador não existe (e nunca existiu)12.
Essa principiologia acaba sendo relativizada aparentemente de forma sutil ao trabalhador, que dificilmente percebe as modificações intrínsecas na relação laboral. O discurso do “gerenciamento pós-moderno” impregnado do espírito do toyotismo busca tratar os operários ou empregados como “colaboradores” que executam um trabalho em equipe, fazendo com que aquele sistema seja expressão daquilo que Giovanni Alves chama de “racionalidade cínica”13.
É exatamente a partir disso que o autor acima conclui pela “captura” da subjetividade do trabalhador. Isso porque o processo de precarização do trabalho no capitalismo global atinge tanto a objetividade quanto a subjetividade da classe trabalhadora. O eixo central dos dispositivos organizacionais é a captura da subjetividade do trabalho pela lógica do capital, por meio da constituição de novo nexo psicofísico capaz de moldar e direcionar ação e pensamento dos operários e empregados em conformidade com a racionalização da produção. Os dispositivos organizacionais do novo modelo de gestão mais do que as exigências da organização industrial do fordismo, sustentam-se no “envolvimento” do trabalhador com tarefas de produção em equipe ou jogos de palpites para aprimorar procedimentos de produção.
A organização toyotista possui densidade manipulatória de maior envergadura. O que se busca “capturar” não é somente o “fazer” e o “saber” do trabalhador, mas a sua disposição intelectual-afetiva, constituída para cooperar com a lógica da valorização. O trabalhador é encorajado a pensar “pró-ativamente” a encontrar soluções antes que o problema aconteça. A empresa toyotista busca hoje mobilizar conhecimento, capacidades, atitudes e valores necessários para que os trabalhadores possam intervir na produção, não apenas produzindo, mas agregando valor. Eis o significado de “captura” da subjetividade do trabalho14.
Mas é importante destacar que a própria jurisprudência atual vem relativizando o princípio da proteção ao trabalhador, no sentido de suposta “liberdade sindical” a equiparar os contratantes.
Tal posicionamento vem sendo observado, mesmo antes da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), tanto pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST15), quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF16), ainda que de forma não tão ferrenha quanto a nova legislação.
O que se observa, conforme os precedentes acima transcritos, é que a jurisprudência se inclinava, de fato, no sentido da valorização da norma coletiva, na forma do artigo 7º, XXVI da CRFB/88, entendendo pela sua validade quando da retirada de algum direito do trabalhador, mas com a concessão de alguma contrapartida, ou seja, não admitia a simples supressão, mas compensação. Dessa maneira não se deferia a simples ablação de direitos por meio de negociação coletiva, sob pena de deturpação total da proteção inerente ao Direito do Trabalho.
Entretanto esse não foi o entendimento advindo pela Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), que relativizou excessivamente o princípio da proteção em inúmeros de seus dispositivos, fazendo surgir uma nova ótica do Direito do Trabalho brasileiro.
2. Relativização do princípio da proteção no Direito Individual do Trabalho em razão da Reforma Trabalhista
Limitando o escopo do presente trabalho ao Direito Individual do Trabalho, destaco a existência de dispositivos específicos que procederam à relativização do princípio da proteção, a exemplo dos artigos 62, III, 71, §4º, 223-G, 444, paragrafo único e 507-A da CLT, todos com alterações promovidas pela Lei 13.467/17 (não adentrarei em outros exemplos para não estender sobremaneira o presente trabalho, inclusive dispositivos que tiveram redação conferida pela MP 808/17, até porque esta não foi convertida em lei ordinária).
Pelos dispositivos acima citados temos a relativização do princípio da proteção na relação individual nos seguintes casos:
(i) retira a limitação da jornada ao teletrabalhador (artigo 62, III), em aparente afronta à proteção conferida pelo artigo 7º, XIII da CRFB/88;
(ii) retira a natureza salarial do trabalho executado em intervalo intrajornada (artigo 71, §4º), criando uma nova e perigosa forma de exploração do trabalho, que é a possibilidade de exigência de labor no intervalo para descanso, mas mediante pagamento de indenização, ou seja, sem qualquer natureza salarial ou remuneratória e reflexos em contribuições previdenciárias;
(iii) parametriza os valores de indenização por danos morais (artigo 223-G, §1º), em que pese ser entendimento pacífico do STF e STJ tal impossibilidade em razão da dignidade da pessoa humana17;
(iv) criação da figura do trabalhador hipersuficiente em detrimento do hipossuficiente, em que a existência de um patamar salarial base18 e diploma de nível superior permitem a ampla negociação individual com os mesmos efeitos da negociação coletiva (artigo 444, parágrafo único), ou a existência de remuneração igualmente em determinado patamar não ilide a cláusula compromissória de arbitragem (artigo 507-A);
3. O surgimento do princípio da compensação da posição debitória complexa das partes e breves perspectivas para o futuro
Em razão de toda a relativização da principiologia protetiva norteadora do Direito do Trabalho (focando-se neste trabalho, reitere-se, no Direito Individual), entendemos que tem vez, em nosso ordenamento jurídico, o princípio da compensação da posição debitória complexa das partes.
Compulsando a doutrina lusitana, extrai-se de obra da professora Maria do Rosário Palma Ramalho19 a tese pela qual a proteção conferida pelo Direito do Trabalho deve ser destinada não somente ao empregado, mas também ao empregador: o objetivo é a proteção daquele em razão da necessidade de compensação de sua inferioridade negocial, mas também ao tomador dos serviços, com o intuito de garantia do cumprimento dos deveres especialmente amplos que lhe incumbem no contrato de trabalho, viabilizando-o. E uma observação importante: tal principiologia fora desenvolvida em Portugal, que é um país que possui um sistema juslaboral tradicionalmente apontado como um dos que mais protege o trabalhador na União Europeia20, existindo, inclusive, o direito fundamental constitucionalmente positivado da segurança no emprego e proibição dos despedimentos sem justa causa21.
Mas nem os mais restritos e severos sistemas resistem ao neoliberalismo que, através do sistema toyotista de produção, torna cada vez mais globais os espaços, fazendo com que as novas máquinas de comunicação em rede que intensifiquem mundialmente o papel da informação dentro das organizações, constituindo um novo espaço virtual de informação e comunicação (o ciberespaço), inaugurando uma “Quarta Revolução Tecnológica”22. E é a partir daí que surgem novas formas de exercício do trabalho antes não pensadas, bem como novos modelos de trabalhadores e até mesmo da subordinação jurídica classicamente estampada na lei.
Por esses e outros motivos que se indaga se na atual sociedade haveria lugar para o princípio da proteção em sua forma clássica, no que a Reforma Trabalhista respondeu, claramente, no sentido negativo. O Estado deixa de ser o reitor da vida humana no trabalho, cedendo espaço para a negociação entre as partes como forma de solução dos conflitos23, permitindo a releitura do princípio da proteção.
Exatamente sobre esse tema, o professor Guilherme Guimarães Feliciano, citando a doutrina da professora Maria do Rosário Palma Ramalho, prevê a necessidade de reconhecimento de novos princípios do Direito do Trabalho contemporâneo em razão da crise pela qual este passa, elegendo quatro grandes objetivos para as reformas laborais; (i) melhor adequação do regime do contrato de trabalho aos novos modelos de gestão empresarial e desafios crescentes de competitividade e produtividade, (ii) melhor adequação regimes laborais aos novos perfis de trabalhadores (como teletrabalhadores), (iii) reposição do dinamismo da negociação coletiva e (iv) manutenção do núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores24.
Eis então, o grande mote da Reforma Trabalhista, não se sabendo se utilizado pelo legislador por conhecimento, ou, simplesmente, adaptando-se ao movimento neoliberal reformista moderno que gerou Reformas Trabalhistas em mais de 100 (cem) países.
Vale destacar que quanto a essa última informação o resultado de profunda pesquisa da OIT acerca dos impactos reformistas não foram animadores, sendo apontado o aumento do desemprego ao longo do tempo em detrimento da propalada salvaguarda dos postos de trabalho25.
Naturalmente o desejo íntimo é que os trabalhadores brasileiros não sofram dos mesmos sintomas, em que pese ter sido relativizado o princípio da proteção, inaugurando-se uma nova era ao Direito do Trabalho, que necessitará de novos pensamentos críticos e reformulação.
No entanto, caso não seja esse o caminho, ao menos o consequencialismo denegridor da dignidade humana do trabalhador não terá ocorrido por resultado de falta de estudos e avisos dos verdadeiros especialistas no assunto.
Fonte: JOTA